quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O funeral da classe média

            02/01/2013

            Com 96 anos, ainda não tinha perdido a esperança de ser assassinado por um marido ciumento, e afiançava (a pés juntos) que ainda “ia” quase todos os dias. Jurava que quase “ia” na segunda e na terça-feira, e por pouco quase tinha “ido” na quarta, sem nunca desistir de tentar “ir”. Teimosias do passado, agora diluídas no conformismo das pantufas, para ir ver banalidades na televisão, que mobilam o tempo de antena nos intervalos das novelas e da casa dos (S) Degredos.
Num desses tempos-de-antena, debatia-se as declarações da Sª Isabel Jonet, que conheço de vista, pelo excelente trabalho que desempenha, benevolente há 30 anos, ao serviço do Banco Alimentar Contra a Fome, para socorrer mais de trezentos e setenta mil pobres desemparados.
Em breves declarações, a Sª recomendou a urgência de reconquistar valores perdidos, dando quatro como exemplo.
1º- No seu tempo de criança, foi ensinada a lavar os dentes com um copo, o que a sua filha agora faz com a torneira a correr.
2º- Os filhos (trintões) que vivem á custa dos pais, tem de optar por ir ao concerto de Rock, ou poupar o dinheiro para uma radiografia que venha a ser necessária fazer.
3º- Se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não os podemos comer.
4º- As pessoas com mais de 45 anos, só voltarão a ter emprego se criarem o seu próprio negócio.
Talvez por defeito (de fabrico) meu, ou por ter crescido com razoável dentição, mas sem bifes para a usar, com copo para a lavar, mas sem torneira com água a correr, aplaudi, achei que a Sª “falou como Deus”, e que as suas sábias recomendações, eram os primeiros passos para fugir da pobreza.
Passados escassos minutos, “terminava a paz no canil, com os fiéis amigos em matilha”, a zurzir a torto-e-a-direito na Sª, acusando-a de incentivar os pobres a habituar-se a ser pobres.
O debate, apoiado em reportagem televisiva num salão de cabeleireira, a entrevistar uma “pobre”, com capacete de astronauta na cabeça, mão estendida com a palma virada para baixo, enquanto a manicura lhe tratava e pintava as unhas. Com voz de “remediada”, berrava desalmadamente, que o País era uma merda, os subsídios eram cada vez mais escassos, já nem davam para manter o corte de cabelo do filho, com o visual dos “Morangos com açúcar”.
Os governantes que só pensam em manter o lugar, em beneficiar as “vacas leiteiras” financiadoras dos partidos, e em dar jobs-aos-Boys de serviço: deveriam ouvir atentamente as recomendações da Sª, que aconselha ao fecho da torneira, para pagar as águas corridas, os concertos vividos, os bifes comidos, alterar a ementa para ovos estrelados, e transformar os concertos de guitarras e violas, em consertos de solas dos sapatos esburacados.
Os políticos não largam mão dos pobres. Fazem lembrar-me a tia-avó, que ganhou notoriedade, a auxiliar (não os “pobres” parasitas que o governo inventou, mas sim) os pobres desgraçados que o destino condenou. Descalços, unhas aparadas com tesoura de podar, calças rotas, casula de cardeal confecionada com sacos de lona, que servia (au mesmo tempo) de camisa e mochila para guardarem as esmolas, cabelo e barba comprida, recheados de pulgas e piolhos, com um toquezinho (á chefe) de carrapatos agrafados nas joias-de-família.
Quando se perguntava ao Sr. Pobre barbudo, onde metia a barba para ter tantas pulgas, respondia que vinham da zona púbica da sua Pobre companheira. Adiante! O Sr. Pobre barbudo, “vendia” boa disposição. Quando a tia-avó, lhe deu a esmola de dois tostões, e lhe recomendou para não gastar o dinheiro em tabaco, respondeu; “ fique descansada minha senhora, vou comprar um barco de recreio”.
Uma vez, apareceram dois pobres, a quem a tia-avó, fez o questionário de sempre a pobres desconhecidos. Perguntou ao primeiro, se gostava de fumar, de beber, de comer bem, e levantar tarde. O Pobre respondeu positivamente a todas as perguntas, e recebeu a esmola de 5 tostões. Fez as mesmas perguntas ao seu companheiro. Este apressou-se a responder que, nem era bêbado, nem fumador, nem comilão, nem calaceiro, e recebeu a esmola de 2 tostões. Furioso por ser um Pobre exemplar, e receber a esmola mais pequena, teve a resposta da tia-avó: “ és um pobre exemplar, mas não tens as necessidades do teu companheiro”.
Os Pobres que por ali passavam, pernoitavam sempre no palheiro da tia-avó. Um dia, quando ia à catequese (a fim de angariar indulgencias para o meu futuro celestial), dei de caras com um funeral, seguido da sombra escura da mulher a carpir, que chorava pelo destino agreste que esperava o defunto na tumba. “A casa onde não se come nem bebe, não há cama e a noite é fria”. Desatei a correr, avisar o Sr. Pobre barbudo, para fechar a porta do palheiro, não viesse o defunto disputar o nada aos mortos de tudo que ali pernoitavam.
O tempo passou, o palheiro acabou, os pobres continuam a suportar os carrapatos, e também a praga de outra classe de ”pobres” parasitas (piores que a peste negra) que estão a definhar o País.
Os ricos trancaram as portas e continuam a andar de Ferrari. Nós, confiamos a tranca da porta aos caciques, (que nos põe a pedir) para alimentarem os “pobres” parasitas que o governo inventou, á custa dos remediados que ficam cada vez mais pobres, e á custa da sobrevivência dos verdadeiros pobres desgraçados que o destino condenou, que ficam cada vez mais miseráveis.
Por maior insistência do meu amigo, não consegui ver o casal de “Pobres” (que o governo inventou), que no café terminava de lanchar, antes de ir recolher os filhos á escola. Opobre”, disfarçado ao volante do carro, detrás de óculos de sol. A “pobre”, (sem capacete) mas com bota preta de cano alto, calça e camisa apertada com decote generoso, cabelo colorido de roxo, e unhas pintadas a condizer com o tom da maquilhagem. Eram tão miseráveis os “Pobres” do meu amigo, que nem conseguiam poupar 50 cêntimos, nas centenas de euros da decoração visual, para comprar massa-cotovelo, e matar a fome dos filhos, que tem na escola a única refeição do dia.
Também é verdade, que a esmola da Tia-avó (Estado), não chega para comprar um barco de recreio. Mas vai chegando para manter o carro, renda da casa, luz e água, para lanchar no café antes de recolher os filhos na escola, e em casos de miséria descarada, até dá para acompanhar os concertos de “Toni Carreira”.
A ruina do pobre, é quando deixa de ser discreto, e a abundancia o transforma no carrasco do remediado e na desgraça do pobre necessitado.
Finalmente, os Pobres do meu amigo são ainda mais parasitas que os carrapatos dos meus. Se voltasse à catequese, voltaria a correr avisar os Pobres para fecharem a porta, que vem a caminho a sombra escura da mulher a carpir, a chorar no funeral da (defunto) classe-media, para disputar-lhes o lugar no palheiro. “ A casa onde não se come nem bebe, não há cama e a noite é fria”. É a vida: Se na democracia da vegetação as ortigas votassem, seria o funeral dos lírios do meu jardim.