domingo, 17 de novembro de 2013

A missa do galo

 
          16/11/2013
          Talvez, que as memorias representem a capacidade de fantasiar o passado, recordando a nostalgia da infância, onde o ponto de partida pode ser um elemento tão simples como um odor, um som oriundo de um tempo perdido
          Outra coisa é sonhar de olhos abertos com esta idílica terra de Deu-la-Deu e recordar com saudade o Didon (amigo do peito) e seu receituário mágico, que fez com que o burro da Sagrada família colabora-se com mais entusiasmo na encenação do Presépio vivo da missa do galo.
          O Didon, um veterano já com a dúzia de primaveras, nunca tinha assistido a nenhuma missa do galo, pois quando tinha desejos de participar faltava-lhe a idade, e quando sobrevieram os anos, abalara-se-lhe a fé. Naquela idade em que andamos zangados com tudo, ele considerava uma alarvidade importunar a malta com missas fora de horas.
          Decorriam os anos do Twist, era véspera da missa do galo e dia de confesso para os da primeira comunhão do ano anterior. Na casa-da-mesa, os mais velhos faziam o “casting” para seleção dos figurantes à representação do povo de Belém. Levavam vantagem os candidatos com artroses agudas, que garantissem qualquer falso movimento durante a encenação. O Chanquinhas e sua companheira, foram selecionados por possuírem os requisitos exigidos pelo júri.
          Já o sol se escondia detrás do sino grande da torre, a fila à porta da Sacristia crescia como leite-ao-lume. Depois do tilintar da aldraba, abriu-se a porta, o Didon saía do confessionário com cara de poucos amigos. O Zezinho (de confiança duvidosa) já tinha confidenciado ao padre António, uma relação detalhada dos nossos pecados, a começar pelo “sacrilégio” de numa noite de temporal, termos escondido a mota do bom pastor no meio do campo de milho, enquanto o bem-aventurado dava o seu melhor para consolar a inconsolável (fresquinha) jovem viúva, que andava triste e desolada pelo desaparecimento do seu ente querido, que Deus chamou a si, para dar mais conforto e facilidade ao seu representante na terra.
          Quando tentei fugir, já o padre António me tinha enganchado a bengala no pescoço, para sentenciar uma penitência do tamanho da longa lista de pecados a confessar, que vinha em crescendo desde o confesso do ano anterior.
          O Padre esqueceu-se das recomendações do Chapa-lisa: as grandes dívidas dificilmente serão saldadas; “se te devo um vintém tenho um problema, se te devo mil o problema é teu”. Assim nascem os caloteiros espirituais.
          Chegou o tão desejado dia. Três horas de Igreja, a não contar com os intervalos, as cantorias e um auto de Natal com presépio vivo, bicharada, pastores, anjos de asas (com penas e tudo) a tocar trombeta anunciando a chegada do Senhor. O burro, conhecido por Janitas, era famoso na paróquia pela teimosia e mau feitio. No dia da festa, apresentou-se lindo e asseado, de clina escovada, engalanado com dois rabinhos de raposa pendurados nas orelhas, arreado com albarda de pele genuína, na qual se sentava a Virgem Maria.
           Tive a nobreza de representar Pedro, o pescador. O Zezinho representava José, o carpinteiro com o Janitas à corda, o Didon, representava Baltazar, o rei mago que estrategicamente se colocou atrás do Burro.
           A dada altura, tal como combinado, o Didon saca o receituário composto de um papel de cigarro que embrulhava alguns gramas de pimenta negra, capaz de por um moribundo a correr a meia maratona, e delicadamente com a ajuda do dedo indicador colocou em parte anatómica do Burro, ainda hoje um mistério por desvendar.
          O Janitas deu logo sinais de vida, e começou a lamber a nuca ao Zezinho. Perante tal acontecimento, os fiéis murmuravam: Milagre, Milagre. Desconfiado das intenções eróticas do Janitas, o Zezinho chamou a mamã que logo correu em socorro do seu rebento para por cobro á química que nascia entre o Janitas e José, o carpinteiro.
            Baltazar, o Rei Mago perante o desenrolar da situação, afastou-se sorrateiramente do trono, no caso de o Janitas necessitar de mais largueza. Ou não escrevesse Deus direitinho por linhas arrevesadas, porque exatamente no momento em que o Padre sobe ao púlpito e começa a debitar o sermão aos fiéis, o burro com o susto, deu um salto e atira a Virgem Maria para os braços do Anjo Gabriel, o coelho trazido pelos pastorinhos galgou Altar-mor acima, derrubando tudo na passagem, incluindo junquilhos e castiçais.
           O Padre vigiava do canto do olho, e subia os decibéis da pregação. O Janitas volta à carga, e dá um coice no poleiro do galo, este liberto das contingências, faz escala na cabeça do Chanquinhas antes de aterrar em voo copulado no Harém das galinhas. Perante a passividade dos fiéis presentes, o Pescador e o Rei Mago, de cajado em riste avançaram para por ordem no Presépio, que andava todo à tapona incluindo a Virgem Maria e o Menino Jesus.
           Por um momento, senti-me vingado do poder materno, que me obrigava a dar o meu melhor em tais encenações. O Padre no púlpito parecia um disco riscado. “Deus é grande, meus irmãos. Deus é grande”.
           Ah mundo-sagrado: quem nos dera ver os Janitas d’agora a suar as estopinhas como o Janitas da missa do galo d’outrora.
          Deus é grande, todo-poderoso, não vai abandonar-nos no meio desta manada, antes de sussurrar-nos ao ouvido o segredo do receituário mágico de pimenta negra, e a mágica pontaria do indicador, para que os Janitas colaborem com mais entusiasmo no progresso desta idílica terra de Deu-la-Deu.
           A fantasia e o sonho do passado, transformaram-se no pesadelo do futuro, sem horizonte e sem espectativas, enquanto os fiéis defensores destas matilhas se comportarem como o, ” corno que sabe que é mas não quer saber, e agradece a quem los faz crescer.
          Hoje talvez achasse piada àqueles bosquejos etnográficos de religiosidade popular. Mas prefiro pensar que assisti a um dos mais belos «gag» digno do melhor Fellini, com esta obra-prima, A odisseia dos burros” tão famosos a relinchar e a coicear, e tão desastrosos a decidir e a governar. “Arre…..?”.