17/06/2014
Felizardos da vida, vivíamos todos em comunidade, as vacas (magras)
viviam em baixo, separadas da malta pelo sobrado de madeira, eram tempos de
ásperos recursos em que a necessidade aguçava o engenho e assim se resolvia a
falta de aquecimento central e ambientador artificial, substituído pelo
ecológico ambientador e aquecimento natural.
O chão da cozinha era ladrilhado a perpianho deitado, a
cheminé de campana aberta abrigava a família e servia de fumeiro para chouriços
e presuntos curar ao calor do lume da lareira. A robusta parede de pedra dobrada
tinha vários nichos embutidos. O nicho do fundo servia de borralheira e de
aposentos para o cão e o gato nas noites frias de inverno; no da esquerda morava
o cântaro de barro da água e demais utensílios da cozinha; o do lado oposto
servia de armário e de mesa de jantar quando abria a porta na horizontal sustentada
por duas dobradiças e uma estaca de madeira. A mísula saliente da parede suportava
uma estatueta de pau de Nossa Sª de Fátima, maneta sem braços que foram
queimados pela proximidade da chama da candeia a petróleo que iluminava o forno
de pedra atrás da masseira onde a avó amassava o pão com a lengalenga: ”Assim se amassa / assim se peneira / assim
se vira / o pão na masseira”.
As camas eram de colchões
de palha com pulgas. Em relação às pulgas, nos anos oitenta, um escritor
estrangeiro por não entender o aumento da natalidade daquele tempo escreveu: “a culpa é dos pobres que tem um vigor sexual
desregulado, e andam a procriar mais do que podem alimentar”. O senhor escritor
não sabia que a culpa era das pulgas! Nesse tempo o casal passava a noite toda um
encima do outro alternadamente. Enquanto o de cima descansava, o de baixo mexia
o cú para fugir das picadas das pulgas que parecia uma bailarina no Harém das
mil e uma noites. Agora para inverter a tendência, deveriam os casais comprar
colchões de palha com pulgas para ver se a coisa funciona, a não ser que a coisa
tenha sofrido uma trombose e nem as pulgas consigam dar-lhe sinais de vida.
Manhã cedinho, os
cornos a bater no sobrado acordavam a família para anunciar a hora do
pequeno-almoço. Para as vacas a copa de palha, para os vaqueiros a tigela de
água d‘unto com pão de milho, uma pechincha para o colesterol que na altura
andava sem morada certa.
O jantar era de três sardinhas, uma para o pai e as restantes
a dividir pela família, acompanhadas da tigela de caldo com farinha e do potinho
de vinho quente com açúcar para aquecer o colete antes de ir deitar. Quando a avó
começava a rezar o terço era hora de o genro ir fazer companhia às pulgas. Os
outros rezavam até adormecer enquanto a avó terminava a reza sozinha a pedir ao
criador que nos livrasse das labaredas do inferno.
As noites de fiada eram noites de festa, ninguém rezava, até
as pulgas dormiam sozinhas. As vacas pernoitavam ao relento para ceder os
aposentos às fiadeiras, que depois de estrumados com tojo novo para cobrir a
bosta, eram equipados com bancos de madeira compridos encostados à parede onde elas
se sentavam de roca à cinta engalanada com uma pelota de lã, estriga de linho
apertada pelo naipe e fuso onde nascia a maçaroca. O espaço livre entre duas
fiadeiras assinalava que a moça da esquerda (salvo-seja) era namoradeira.
Bonitas, de rosa à orelha, asseadas de blusas brancas ou coloridas
e saias de folhos com racha apertada na cinta com um colchete. Umas
morenaças-do-caraças em contraste com a velha parede e a lanterna pendurada na trave
de carvalho, pareciam um jardim de flores.
Os rapazes previamente convidados só podiam entrar na fiada quando
elas começavam a cantar, o que faziam divinamente sem acompanhamento instrumental
como agora se usa para encobrir a voz de cana-rachada.
De todo o lado chegavam grupos rivais. Era obrigatório
cumprir as regras para que a coisa não desafina-se. O “Apaga-a-vela”, a nossa mascote não era flor que se cheire. Logo que
podia atropelava todas as regras, sem olhar como nem na presença de quem,
começava logo a gritar; “vamos rapaziada,
galinha que canta quer galo”, o que deitava logo por terra todo o
romantismo da coisa.
Porém tudo lhe era permitido em troca dos serviços que
prestava. Quando chegava a nossa vez de sentar ao lado da namoradeira, tratava logo
de apagar a lanterna a petróleo soprando discretamente numa cana de foguete
furada, que nos permitia com alguma prática e muita safadeza desapertar o
colchete e abrir a racha da saia que transformava aquele momento escuro na mais
clara recordação da nossa vida.
Andei a aperfeiçoar técnica da cana furada desde a noite que
a avó me levou à fiada e me sentou no feno dentro da manjedoura, um género de camarote
presidencial do Moulin Rouge para me proteger de ser atropelado pelos adultos.
Ainda hoje sinto
arrepios na espinha ao lembrar o silêncio na corte quando o Timias entrou. Um sujeito
de baixa estatura não superior a três garrafões de cinco litros de pé, com um cavaquinho
ao tiracolo pendurado numa guita de foguete, a cantar: “Não há dinheiro que pague / a filha do lavrador / anda ao sol e á chuva / fica sempre da mesma cor” - “Quem me dera ser o linho / que vós na roca
fiais / quem me dera tantos beijos /
como vós au linho-dais”. Finda a dedicatória dirigiu-se à manjedoura,
pendurou-me o cavaquinho ao peito e foi namorar.
Da manjedoura vi com estes dois que a terra ade comer, uma
cana furada que apagou a lanterna de petróleo, provocando a escuridão que me
iluminou para sempre o caminho do colchete da saia com racha.
Depois dessas memoráveis noites nada mais a declarar. As
saias de colchete fechadas com racha foram substituídas por rachas abertas sem
saia e sem colchete. Foi-se a adrenalina, nem o rastejar na lama da fronteira para
dar o salto debaixo de fogo cruzado entre carabineiros e guardas-fiscais fizeram
despertar a adrenalina da racha. Era o início de uma seca de vida alicerçada em
padrões de banalidade, monótona e bastante aborrecente.
Agora no meio deste
turbilhão de preguiçosos e de ladrões, de rascas e de enrascados, de indignados
e de “grandoleiros” desafinados, resta-me a recordação de um velho retrato. Um verdadeiro
“Chef-d’oeuvre” do fotógrafo da minha terra, que me equipou a rigor antes de
imortalizar o acto para memória futura, com o peito que sobrava de uma camisa que
em tempos idos era branca, uma fina gravata preta pendurada num elástico ao
resto do colarinho, um pulôver xadrez a preto e branco aberto nas costas que
ajustava ao cabedal do cliente com uma mola de prender a roupa, antes de cuspir
três vezes num pente desdentado em osso torrado que sacou de uma fenda da
parede para dar o último retoque no penteado. Com o dedo em riste apontado para
objetiva, ordenava: “Olha o passarinho; Hoje
vais tirar o retrato da tua vida”.
O velho
retrato é o elo de ligação com o paladar da meia sardinha, o cavaquinho do Timias,
o caldo de farinha, a tigela de água d´unto, o forno e a masseira da avó, o
colchete da racha da saia e o feno da manjedoura vazia, escola de onde saltei
para a arena da vida sem medo de enfrentar o bicho de caras, ao contrário de
muitos “copinhos de leite” que saltam da recheada manjedoura universitária e
nem para rabejadores servem.
Aos aspirantes rabejadores, desejo que o Pai Natal lhes
ponha no sapatinho um colchão-de-palha com pulgas. Se não lhe pegam de caras, peguem-lhe
de cernelha para mostrar ao mundo que, “
assim se amassa / assim se peneira / assim se vira /o pão na masseira”. O colchete da saia, a saia de racha, as
pulgas da palha; Que saudades!